sexta-feira, 26 de março de 2010

A resposta fundamental.

"Horácio!", lá estava eu precisando desabafar com aquela massa translúcida e disforme. "Onde está você, Horácio?", e ele tinha simplesmente sumido. Eu não podia esperar. Não dava segurar ,toda excitação transbordava, louca para manifestar-se; e aquele infeliz não estava ali para eu compartilhar tão sublime exaltação.


Procurei por todos os antros do castelo. Até me aventurei em locais que antes nem sequer me arriscava. O desespero só aumentava.


Quando minha busca se mostrava infundada, encontro-o assistindo televisão num compartimento que ele julgava secreto.


"Aí está você! Quantas vezes eu já lhe disse para não ficar vendo o que essa caixa de metal tem a dizer? Você sabe muito bem que todas as informações passadas têm fundamentos no mínimo suspeitos?!"


"Bem, eu, quer dizer..."


"Está vendo?! Além do mais, ainda deixa-o aturdido, débil e incapaz de pensar numa resposta satisfatória!"


"Tudo bem, meu caro. Perdoe-me a falta de tato. Apenas tentava diminuir minha gigantesca sapiência, pois você bem sabe que tenho me adaptado numa vagareza sem tamanho. E a televisão tem cooperado em acelerar o processo de adequação a esta atual dinâmica dos novos tempos."


"Tá bom. Deixe minha raiva para depois. O que tenho a dizer-te é sumamente mais importante."


"Pois então diga de uma vez."


"Descobri que nada faz sentido!"


A mudez do espectro e seu posterior desaparecimento gradativo mostrou-me que também preciso me adequar aos novos tempos.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Caso platônico inacabado.

Um belo dia de outono, quando as folhas secas realizavam trajetórias incertas em direção ao chão, encontrei um pedaço amassado de papel. Curioso em vê-lo ali, tão perto do meu lar, resolvi examiná-lo, mas não sem antes ter certeza de que ele não tenha sido usado para fins higiênicos desesperados.

Ao constatar que o papel apenas estava sujo pela poeira que acumulara em suas dobraduras, peguei-o, desdobrei-o e li. Assim estava escrito:

"Desdenhosos olhos de amora, tão vívidos quanto a abóboda celeste vista numa região privada de enegia elétrica, sendo esta manifestada por cabos rígidos, em suas posições majestosas, olhando com desdém os humildes usuários que passam sob elas, à procura de algo ou alguém que mostre o significado do porquê de tamanha indiferença tua para comigo.

Caminhar suntuoso, carregado de volúpia e esbanjando insensatez. Quantas vezes serão necessárias até que o magnetismo descarrgado pelo teu simples rebolar permeie meus globos oculares, maculados com tal afronta da tua parte?

O que mereço eu, em te curtir isolado, insinuando momentos, imaginando sentimentos? Mãos calejadas e orgulho ferido, apenas.

É por isso que estaciono debaixo de uma árvore, buscando a sombra que me impeça de queimar. Encostar o dorso no deformado caule e saborear o momento de descanso. Talvez retirar um livro lido pela metade e conclui-lo lá. Esquecer de tua existência."

Desde logo, simpatizei com o sentimento manifestado. Por isso, hoje tenho-o emoldurado na parede da sala.

terça-feira, 9 de março de 2010

Satisfação intercalada com criação.

Um cheiro adocicado penetra o cubículo vindo do mar de petúnias que cobre a base do meu castelo. Apesar de não me preocupar com jardinagem, elas permanecem vigorosas, ímpavidas diante dos transtornos incessantes da região, como a seca e a umidade discrepantes e súbitas.

Ao avistá-las diariamente, encho o peito do inebriante ar que liberam e retomo às minhas experiências, sempre revigorado.

Hóracio, ser imaginário que vaga pelas redondezas, atormenta-me com suas questões insensatas:

"Acredita mesmo que ninguém é reponsável pela beleza insultante dessas plantas tão estupidamente alinhadas?" ou

"Por que elas continuam a brotar, se não a queremos aqui? O indivíduo intrometido deveria quedar-se num espasmo, ao ínves de cometer tamanha afronta. Ele realmente pensa estar prestando um benefício, não é mesmo?"

Entre tantas outras indagações tão desnecessárias.

Ignoro-o, voltando a minha atenção para um ser que criava. Tão singelo, tão único, tão tão... mordaz.

Todo o processo de concepção do ser será detalhado numa próxima oportunidade.

quinta-feira, 4 de março de 2010

O incidente.

Inúmeras borboletas, cujas asas lembram globos oculares abertos de felinos, atravessam a janela e se alojam nas paredes. Estranhamente, nenhuma delas se aventura a pousar no chão. Talvez com medo de serem pisoteadas.

No momento em que houve a invasão, estava eu encostado na cabeceira da cama, lendo "A Ilha do Dr. Moreau", pegando uns macetes de como evoluir rapidamente seres dito inferiores.

Ao término, me vi cercado de dezenas de olhos a fitarem-me.

Num breve levantar, os olhos piscaram algumas vezes de uma maneira incomum (na vertical). Daí então houve a súbita fixação. Todos os olhos pareciam observar-me com admiração, como que me avisando de um acontecimento iminente.

Não tardou para acontecer. Logo ouvi um ronco fortíssimo vindo de fora, como se o céu rasgasse. Corri para a janela a fim de ver o que se sucedera. Um avião despencava na minha direção!

Disparei do alto do meu castelo, para os níveis inferiores. Com certeza estaria seguro no calabouço. Só pude ouvir um estrondo e o balançar. Alguns rebocos mal colocados cederam e bagunçaram ainda mais o lugar.

Quando o pandemônio passou, me aventurei a subir e ver o estrago.

Infelizmente, não pude ir muito além, pois parte do edifício tinha vindo abaixo e o caminho estava obstruído. Resignado, simplesmente saí por uma passagem subterrânea e vi da base do morro onde o castelo está posicionado o que sucedera. Parecia uma mariposa gigante atolada num pote de mel.

Dá fumaça branda a explosão seguiu-se. Acabara de perder meu castelo.

Em meio ao melancólico momento, me surpreendi ao ver muitas daquelas borboletas do início aproximando-se de mim. Não esperei elas trazerem milagrosamente nada para mim, mas sabia o que devia dizer a elas:

"Obrigado".

Assim, todas alçaram voo, com exceção de uma. Esta decidiu me fazer companhia e pousou no meu ombro. Parecia que ficaria comigo até a resolução daquele problema. Aqueles olhos estariam velando por mim.